Por Marcio Farias*

“Para Florestan Fernandes: exemplo de integridade científica e coragem humana”
NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Paz e Terra, 1978

 

Integração do Negro na Sociedade de Classes

Florestan Fernandes é o mais importante sociólogo brasileiro. Sua vasta produção abarca um arcabouço teórico amplo, ainda que por muitas vezes denso, perpassando por diversos assuntos e, dentre eles, o tema das relações raciais no Brasil.

Ainda na década de 1950, Florestan liderou, ao lado de Roger Bastide o grupo de pesquisas da Unesco no Brasil sobre relações raciais. Desse período foram publicados o relatório Brancos e negros em São Paulo[1] e o livro O negro no mundo dos Brancos[2]. Na década de 1960, defendeu sua tese de livre docência A integração do negro na sociedade de Classes[3].

Este último é uma espécie de síntese do período de estudos e elaboração teórica de Florestan que se inicia na década de 1950 e tem nesta obra o seu corolário. Livro volumoso e denso, divide-se em duas partes. Na primeira, Florestan apresenta a análise da sociedade escravista e suas bases estruturais, enfatizando o período de transição da sociedade escravista para sociedade de trabalho livre assalariado. Portanto, concentra-se no período das lavouras de café na região sudeste, local em que se dinamiza a economia do país no período. Na segunda parte, se dedica a análise do “problema do negro nas sociedades de classes”. Com robusto trato investigativo, amparado em sólida pesquisa de campo, Florestan Fernandes confronta a tese central dos estudos matizados na ideia de que raça não era uma variável que incidia na desigualdade social da moderna sociedade brasileira.

As obras supracitadas se situam diante de um momento da trajetória intelectual de Florestan marcada pela heterogeneidade teórico-metodológica. Do ponto de vista de sua historicidade, elas antecedem o golpe militar de 1964 e o posterior exílio de Florestan. Esses aspectos se apresentam como elementos de uma inflexão posterior na obra entendida como de maturidade, iniciada na década de 1970 com o lançamento de Revolução Burguesa no Brasil[4].

Posterior a essa obra, Florestan colige um conjunto de ensaios no livro Circuito Fechado[5]. No conjunto de textos que formam a obra, dois artigos se dedicam ao tema das relações raciais, sendo o primeiro em relação à sociedade escravista e o segundo sobre relações raciais no Brasil contemporâneo, que discute os impactos de suas produções anteriores, respondendo aos críticos os pontos de convergências e divergências em relação ao conteúdo dos debates de então. Sobre eles, escreve no prefácio:

 

Os dois primeiros ensaios focalizam outros temas, na aparência “menos quentes”: a sociedade escravista das épocas colonial e imperial; e a situação do negro em São Paulo vinte e cinco anos depois da pesquisa R. Bastide-F. Fernandes. Mas, quem é que disse que teríamos “essa” universidade ou “este’ presente se de permeio não estivesse um passado colonial , que deixou sequelas que ainda não foram absorvidas nem eliminadas? Além do mais, como escrevi algures, é a partir do negro que se deverá tentar descobrir como o “Povo emerge na história” no Brasil. Muitos dirão que ele não emerge nem nunca emergiu. Engano redondo. Se não estivesse emergindo, e com certa impetuosidade , nem “as revoluções institucionais” nem o Estado autocrático burguês seriam uma imperiosa necessidade histórica (Florestan, 1976/2010, p. 28).

 

Portanto, para Florestan, os rumos da negação do “circuito fechado” que as elites impunham aos “de baixo” teriam na população negra um de seus alicerces.

Protesto Negro

No encalço do debate sobre relações raciais no final da década de 1970 e início da década de 1980, Fernandes, que já havia prefaciado obras de escritores negros no campo da literatura[6], agora faz a apresentação do importante livro Genocídio do Negro Brasileiro[7] escrito por Abdias do Nascimento. Florestan é enfático ao apontar a importância de Abdias para a produção crítica do Brasil:

São tantos e tão profundos os laços que me prendem a Abdias do Nascimento, que enfrento um compreensível acanhamento em apresentar esta obra ao público brasileiro. Estamos no mesmo barco e dando o mesmo combate-não de hoje, mas há anos. Persistimos por uma questão de caráter e de formação política. E se algo nos separa, é o vulto de sua contribuição, comparada a minha. Eu fui acusado de identificação moral e psicológica com o negro. ELE É NEGRO E NÃO PODE SER ACUSADO POR NINGUÉM, e, por ventura, o que não desistiu depois que todas as bandeiras se arriaram. Portanto, o que nos distingue é a qualidade de sua contribuição e o valor de sua atividade (Fernandes, p. 19, 1978) .

Continua:

Este livro repõe, de novo, todo o significado da presença de Abdias do Nascimento na agitação do problema africano no Brasil ( e não mais do “problema racial brasileiro”). Ele não pede “migalhas do banquete” e tampouco perde tempo com “a questão da justiça à gente negra”. Isso fica para o passado, para as agitações e os movimentos das décadas de 30 e 40. COMO NÃO É BRANCO E LIBERAL, como Nabuco, não toma as vestes do paladino da “causa do negro (Fernandes, p. 20, 1978).

Fechando um ciclo, no final da década 1980 é feita a reunião de um conjunto variado de textos e publicado o livro O Protesto Negro[8]. Deve-se levar em conta que nesse período Florestan concilia sua atividade intelectual com a atuação política que culminará na sua inserção legislativa como deputado federal, função que exerceu até 1994, um ano antes da sua morte.

Em O Protesto Negro, Florestan reexamina algumas de suas teses defendidas nas décadas anteriores. Já diante de um novo movimento negro organizado com uma década de aglutinação, rearticulado e com alguns teóricos dos mais competentes, o autor parte de um novo patamar de complexidade para refletir sobre um conjunto de temas centrais naquela conjuntura.

Um primeiro tema que se pode destacar foi a importância da questão racial para a agenda da esquerda socialista:

Mesmo quando o negro não sabe o que é socialismo, a sua luta por liberdade e igualdade possui uma significação socialista. Daí ser ele uma vanguarda natural entre os oprimidos, os humildes, os explorados, enfim, o elemento de ponta daqueles que lutam por “um Brasil melhor” ou por “uma sociedade justa”. Ó PT precisa avançar muito para acompanhar o processo de luta que emerge por dentro e através desses estratos da população. Porque, nessa esfera, não basta apontar para o caráter emancipador do socialismo proletário. É preciso que o socialismo proletário venha embebido de um impulso radical profundo que ultrapasse a libertação coletiva da classe trabalhadora e destrua, até o fim e até o fundo, a opressão racial.

Essa afirmação se sustenta e pode ser entendida no diapasão da discussão sobre “O que é revolução”[9] para Florestan. Dado o caráter antissocial, antinacional e antidemocrático da burguesia nacional, para ele a efetivação de um desenvolvimento e de uma democracia plena ficaria a cabo “dos de baixo”, mas que ao se deslocar de classe em si à classe para si jogaria o peso da história para uma revolução socialista. Sendo assim, é patente a forma como ele analisava a importância da população negra na estratégia revolucionária.

Tanto o é, que esmiúça a dimensão de formação da classe trabalhadora e a contradição adicional do racismo para a compreensão da luta de classes no Brasil:

A classe é, para o proletário, a formação social que or­ganiza o seu confronto com a ordem. O essencial não é o “melhorismo”, a “reforma capitalista do capitalismo”. Mas, a eliminação da classe, do regime de classes e da sociedade organizada em classes. Em sociedades de ori­gem colonial há elementos de tensão que tomam algu­mas categorias de proletários mais radicais e revolu­cionários que outras. Quer para as transformações den­tro da ordem, quer para a revolução contra a ordem, tais elementos de tensão são cruciais para a radicalização e a tenacidade dos movimentos sociais proletários. Isso não quer dizer que todo o negro poderá ser um militante proletário mais firme e decidido que os demais. Quer dizer que a raça é uma formação social que não pode ser negligenciada na estratégia da luta de classes e de transformação dentro da ordem ou contra a ordem, que há um potencial revolucionário no negro que deve ser despertado e mobilizado. Uma coisa é jo­gar contra o capital o dinamismo negador de classe con­tra classe. Outra coisa é jogar contra ele todos os dinamismos revolucionários que fazem parte da situação global. O negro acumulou frustrações e humilhações que tomam incontáveis os seus anseios de liberdade, de igualdade e de fraternidade. Ele não pode dar a outra face. É tudo ou nada. Ou rebeldia ou capitulação. Ou democracia para valer ou luta contra os grilhões, agora ocultos por uma pseudodemocracia. Reflexões desta na­tureza podem parecer equivocadas. Mas, por que as eli­tes temem as classes trabalhadoras e, mais ainda, “o po­pulacho” , em sua maioria composto de negros e de mes­tiços?

Faço esse panorama com o intuito de criticar uma espécie de “cisão” existente sobre a leitura da obra de Florestan desde o fim da década de 1970. Desde então, os pesquisadores ligados ao tema das relações raciais no Brasil o criticam ainda que se atenham em geral ao livro Integração do negro na sociedade de classes. Os estudiosos do assim chamado pensamento social brasileiro se preocupam com o Florestan “maduro” iniciado em Revolução burguesa no Brasil, momento este em que o autor se situa de maneira mais nítida em sua produção no campo analítico marxista. Esse corte impede que se compreenda os caminhos que levaram Florestan à sua maturidade, ao mesmo tempo se limitam ao momento inicial da sua produção.

Em síntese, ambos os setores “puxam a sardinha” para o seu lado de forma arbitrária. Quando confrontamos a obra como um todo, percebemos que Florestan nunca abandonou o tema das relações raciais, ainda que pese a compreensão das determinações estruturais para a formação do Brasil. Em suma, os estudiosos sobre relações raciais, muitas vezes críticos ao marxismo, leem o Florestan do ponto de vista da base teórica, menos marxista sobre relações raciais. A produção posterior é, em geral, desconsiderada. Os intelectuais marxistas leem Florestan da Revolução burguesa em diante. Mas desconsideram tanto o “jovem Florestan” ou, como vimos, o Florestan “maduro” discutindo relações raciais.

Lançamento de Cadernos Negros 1, na Livraria Teixeira. Jamu Minka (autor) e o sociológo Florestan Fernandes

 

Faz se necessário mencionar que as críticas levadas a cabo por Robert Slenes[10], Clóvis Moura[11], Maria Aparecida Bento[12], entre outras sobre o tema das relações raciais na obra de Florestan, bem como o justo debate em relação aos impactos do debate sobre o caráter do capitalismo e sua consequente revolução discutidas por Plínio de Arruda Sampaio Junior[13], Carlos Nelson Coutinho[14], José Paulo Neto[15] e por toda uma ampla gama de estudiosos do grande intelectual paulista são acenos, com maior ou menor êxito, valorosos. Agora, perdem força na medida em que deixam escapar os influxos e inflexões da produção de Florestan. O tema das relações raciais foi um desses debates que se alterou no continuo da produção, ganhando formas e densidades correspondes.

Nesse sentido, essas notas buscam provocar o bom debate, pois nesse momento de recrudescimento da vida nacional, só com as armas teóricas oferecidas por Florestan não dá, mas sem a fortuna crítica de Florestan Fernandes, é impossível a luta pender para o lado dos de baixo.

Notas: [1] BASTIDES, Roger; FERNANDES, Florestan. Brancos e negros em São Paulo: ensaio sociológico sobre aspectos da formação, manifestação atuais e efeitos do preconceito de cor na sociedade paulistana. São Paulo: Global, (1955) 2008. [2] FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global, (1972) 2007. [3] FERNANDES, Florestan. A integração do negro na sociedade de classes (2 vols.). São Paulo: Globo, 2008. [4] FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Globo, (1974) 2005. [5] FERNANDES, Florestan. Circuito Fechado: Quatro ensaios sobre o “poder institucional”. São Paulo, Globo, (1976) 2010. [6] CAMARGO, Oswaldo. 15 poemas negros. São Paulo: edição da associação cultural do negro, 1963. [7] FERNANDES, Florestan. Prefácio. In . NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. [8] FERNANDES, Florestan. Significado do protesto negro. São Paulo: Corteza/Autores Associados, 1989. [9] FERNANDES, Florestan. O que é revolução. São Paulo: Brasiliense, 1981. [10] SLENES, Robert W. Na senzala uma flor – esperanças e recordações na formação da família escrava:Brasil Sudeste, século XIX. Campinas , Unicamp, 2011. [11] MOURA, Clovis. Brasil: as raízes do protesto negro. São Paulo: Global, 1983. [12] BENTO, Maria Aparecida Silva. “Branqueamento e branquitude no Brasil”. In Carone, Iray; Bento, Maria. Aparecida. Silva. (Orgs.). (2002). Psicologia social do racismo. Petrópolis: Vozes, 2002. [13] SAMPAIO Jr, Plínio de Arruda; “Apresentação”. In. FERNANDES, Florestan; Jr Prado, Caio. Clássicos sobre a revolução brasileira. São Paulo: Expressão Popular, 2000. [14] COUTINHO, Carlos Nelson. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. São Paulo: Expressão Popular, 2011. [15] NETTO, José Paulo. Marxismo impenitente: contribuições à historia das ideias marxistas. São Paulo: Cortez, 2004.

¹ Mestre em Psicologia Social, PUC-SP, membro do Nutas (Núcleo de Estudos de Trabalho e Ação Social) PUC-SP, professor convidado do Celacc -ECA/USP e integrante do NEPAFRO.

 

Publicado originalmente em: https://www.nepafro.org/post/florestan