Por Joselicio Junior*

Esse que hoje é conhecido como um dos  maiores espetáculos da terra tem como suas raízes o associativismo negro, formado a partir de quilombos urbanos, que produziu, ao longo dos anos, de forma complexa, formas de integração, descontração e, sobretudo, resistência.

Mesmo com o passar dos anos e as inúmeras transformações e negociações que fizeram do desfile de carnaval o que ele é hoje, essa forma de organização social originalmente negra se reelabora e mantém sua conexão com suas raízes. Seja na liturgia do samba, seja na relação com as religiões de matriz africana.

Olhando para o desfile das Escolas de Samba de São Paulo do grupo especial isso fica ainda mais evidente quando observamos que a ampla maioria dos Enredos e Sambas trazem narrativas africanas ou afro-brasileiras. Clementina de Jesus, Carolina Maria de Jesus, Preto Velho,  Zé Pilintra, Oxalá, Oxum, Yemanjá, Obaluaê, Sankofa, Mandela, Soweto são exemplos que serão exaltados na Avenida.

O samba Paulista tem suas raízes no samba rural, no samba de bumbo de umbigada, expressões que surgem no interior do estado como forma de integração e formação de identidade da comunidade  negra, antagônicas à estrutura escravista e mesmo à sociedade competitiva que se forja no pós-abolição e marca a população negra com valores inferiorizados.

O associativo a partir da cultura, do sincretismo religioso, das festa e dos batuques foi uma estratégia relevante de sobrevivência, de autocuidado, de preservação e até mesmo de resistência. Isso demonstra que as formas de contraposição ao colonialismo e ao escravismo foram múltiplas e complexas.  Ao longo da sua produção, mas particularmente no livro Sociologia do Negro Brasileiro, Clóvis Moura desenvolve as categorias grupo específico e diferenciado, contribuindo para uma análise dialética dos fenômenos culturais da comunidade negra brasileira, base para esta análise.

O samba que nasce no interior se organiza e pulsa na capital no início do século XX a partir das irmandades, dos quilombos urbanos, se inicia com os batuques, transita para os cordões e chega nas Escolas de Samba que conhecemos hoje, sofrendo transformações a partir de um processo dialético, de conflitos, repressão e mesmo negociações e acomodações.

Não há romantismo, nem desavisados. A estrutura de poder operou, sim, para controlar e acomodar a explosão negra e popular de ocupação das ruas, disciplinou a partir de regras que devem ser seguidas à risca, patrocinou temas, construiu formas de garantir rentabilidade e lucratividade para poucos. Mas é só isso? A casa grande tomou conta de tudo e não sobrou nada?

É necessário um olhar dinâmico que aponte os limites, mas também observe as possibilidades, as contradições, as disputas que a própria luta de classe apresenta. As quadras das Escolas de Samba são espaços dinâmicos o ano todo, com trabalhos sociais, e em plena pandemia foram espaço de arrecadação e distribuição de alimentos. A economia do carnaval gera emprego para comunidade inteiras.

Passados dois anos, após atravessar um dos piores momentos de nossa história com a pandemia e um governo central fascista, ainda teremos um grande desafio eleitoral. Nesse contexto, as Escolas de Samba dão o seu recado e mostram o que a comunidade negra pode oferecer de melhor em suas elaborações históricas, para uma sociedade mais justa.

 

*Joselicio Junior, jornalista, editor da Dandara Editora, mestrando da EACH – USP, militante do Círculo Palmarino.