Por Fábio Nogueira

Doutor em Sociologia (USP), Professor Adjunto da UNEB e autor de Clóvis Moura: trajetória intelectual, práxis e resistência negra (Eduneb, 2013).

 

O presente livro de Clóvis Moura foi escrito em uma quadra de sua trajetória intelectual em que as bases teóricas de seu livro de estreia, Rebeliões da Senzala (1959), tiveram um maior aprofundamento e desenvolvimento. O próprio Rebeliões já havia tido uma segunda edição, em 1972, e teria uma terceira no mesmo ano de 1981[i]1. O Brasil de início dos anos 1980 entrava em um período marcado pela transição para a democracia, depois de mais de duas décadas de uma ditadura cívico-militar. Era um momento de retomada das organizações dos trabalhadores, no campo e na cidade, do movimento de moradia e de bairro, assim como de novas articulações do movimento de mulheres, do movimento LGBTQIA+ e do próprio movimento negro, que tem como um de seus marcos a formação do Movimento Negro Unificado (MNU) em 1978.

Neste livro encontramos o desenvolvimento de uma produção intelectual que já acumulava mais de 20 anos se tomamos como marco a publicação de Rebeliões em 1959. Este intelectual quilombola, incansável em seu labor, mantinha pacientemente a construção de um edifício teórico que atravessou diferentes períodos: o populismo, a ditadura militar e a redemocratização. Se a “democracia racial” era um ideal a ser alcançado pelos intelectuais e ativistas negros do período marcado pelo pacto nacional- democrático (1945-1964), depois de duas décadas em que esta foi associada à ditadura civil e militar (1964-1984) há uma mudança de postura. A liderança do movimento negro passa a apostar em uma posição de confronto aberto diante do racismo que é associado não apenas ao autoritarismo dos anos de chumbo como uma formação social em que, tendo por base a escravidão, a elite econômica e política brasileira não abriu mão de seus privilégios. Não se trata de entender o racismo como um problema de comportamento individual ou de grupos, mas de como ele está atrelado à própria estrutura social brasileira. É dessa maneira que o movimento negro se situou no campo democrático e progressista, apostando em uma interlocução preferencial com os movimentos sociais e as organizações e partidos de esquerdas a partir dos anos 1980.

A obra de Clóvis Moura conservou as energias de uma tradição radical negra (Robinson, 2021 [1983])[ii] em que os quilombos em geral, e o mais paradigmático deles, Palmares, em particular, são elementos estruturantes. Aqui, ao contrário dos Estados Unidos, não houve universidades negras e nem havia capitais de impérios coloniais como Londres e Paris, que tanto marcaram a experiência de intelectuais como, para ficar nesses, C.R.L James e Franz Fanon. Os centros de produção intelectual eram quase brancos e o acesso dos negros às universidades muito mais limitado que nos dias atuais. A própria perspectiva de políticas de ações afirmativas só viria a se tornar predominante na gramática das lutas do movimento negro brasileiro a partir dos anos 1990. Às margens dos meios de consagração intelectual, Clóvis Moura é o vértice crítico de três tradições intelectuais bastante importantes para os estudos sobre raça e racismo em nosso país: o primeiro deles, a Escola de Sociologia Paulista e o estudo sobre relações raciais iniciados por Roger Bastide e Florestan Fernandes; o segundo deles, os estudos sobre agência negra sob a escravidão, representados pelos trabalhos de João José Reis, Robert Slenes, Sidney Chaloub e Silvia Lara; o terceiro, a produção intelectual não-acadêmica negra que tem na imprensa e nos clubes negros paulistas um ponto de referência. Tendo o marxismo como ponto de partida e tensão, Clóvis Moura conseguiu estabelecer a rebelião negra e o quilombo como elementos de uma tradição crítica radical negra, algo presente neste livro.

Esta é uma obra em que Clóvis escrutina os fatores que contribuíram e a forma concreta como se estabeleceu a rebelião negra. Os quilombos não são pensados como quistos ou sobrevivências culturais africanas, mas como parte do processo de resistência e superação do escravismo a partir de uma perspectiva histórico-cultural. Moura deslinda o significado dos quilombos na história social do país do ponto de vista de sua organização social, econômica e militar, a relação entre insurreições negras urbanas e os quilombos, as formas de organização e luta negra sob o escravismo e as diferenças e pontos de convergência entre quilombos e o abolicionismo. Com isso, Clóvis Moura estabelece diferentes níveis de interpretação sobre os quilombos e a rebelião negra que conectam processos micro e macro, sem perder a perspectiva de totalidade histórica em que a rebelião e o quilombo emergem como processos, e não como entidades fechadas e a-históricas. É justamente a partir da historicidade das lutas, em que negros e negras afirmam sua humanidade, que os processos de objetivação e subjetivação são pensados de forma articulada e não de maneira estanque. Esta alquimia mouriana em que processos objetivos e subjetivos se articulam de forma dialética permite o diálogo entre abordagens que permanecem separadas, como, por exemplo, a relação entre resistência cultural e a situação econômico-social dos negros que, como mão de obra racializada, ocupam as posições mais precárias e pior remuneradas no modo de produção capitalista.

Infelizmente, Clóvis Moura não tem ocupado nas universidades e no campo das ciências sociais o lugar que lhe é de direito: o de um dos principais intérpretes do Brasil. A republicação deste livro, assim como de outros trabalhos de Clóvis Moura, pela Editora Dandara, se coloca em um importante marco para que finalmente possamos voltar a ter acesso ao pensamento deste pensador fundamental para interpretar/transformar nossa realidade.

 

[i] 1 Sobre as quatro primeiras edições de Rebeliões da Senzala (1959, 1972, 1981 e 1988) de Clóvis Moura ler: SOUZA, Gustavo Orsolon de. Rebeliões da Senzala: diálogos, memória e legado de um intelectual brasileiro. 2013, 143p. Dissertação (Mestrado em História). Instituto de Ciências Humanas e Sociais. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, Seropédica, RJ, 2013.

[ii] Robinson, Cedric J. Marxismo negro. La formación de la tradición radical negra. Madrid: Editorial Traficantes de Sueños, 2020 [Publicado originalmente com o título de Black Marxism: The Making of the Black Radical Tradition. Chapel Hill: The University of North Carolina Press, 1983].