Weber Lopes Góes

Doutor em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC e Pesquisador do Centro de Estudos Periféricos – CEP – UNIFESP/CAMPUS ZONA LESTE

 

Em 1981 o livro Os Quilombos e a Rebelião Negra foi publicado pela Editora Brasiliense. Nessa circunstância o Brasil se encontrava sob o “tacão” do bonapartismo, isto é, no período da ditadura militar de 1964. Cinco anos depois o referido livro foi reeditado pela mesma editora. Não se sabe como foi a sua recepção pelo leitor brasileiro, porém, publicar um livro dessa envergadura nos “anos de chumbo” e reeditá-lo um ano depois que se deflagrou a “democratização” no país não pode ser um acontecimento desprezível.

O livro chegou a público no contexto em que a existência de uma democracia racial já havia sido alvo de avassaladoras críticas, sejam aquelas reverberadas pelo movimento negro ou pelos intelectuais que procuravam abordar a condição do negro no Brasil – Florestan Fernandes, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzáles, entre outros. Sua publicação se deu no momento em que no Brasil não mais se podia esconder as letalidades de negros e negras por parte dos grupos de extermínio e pelo aparato da polícia militar, fruto da ditadura, bem como eram explícitas as denúncias referentes à esterilização de mulheres negras.

Passados 41 anos da publicação do livro em mira, qual seria a sua contribuição, num Brasil de capitalismo dependente no século XXI? Considerando que hoje, 2022, já existe uma gama de reivindicações e concretizações, talvez em parte, das demandas encampadas pelo movimento negro brasileiro, como por exemplo a consolidação da Lei 10.639/03, que preconiza a obrigatoriedade do Ensino da História da África e Afro-brasileira nos estabelecimentos do ensino público e privado, e a Lei de Cotas (12.711/12), que prevê que 50% das vagas em universidades e institutos federais sejam direcionadas para pessoas que estudaram em escolas públicas.

Todavia, de acordo com os dados oficiais, o Brasil ocupa a terceira posição entre os países que mais concentram pessoas nas unidades prisionais no mundo, especialmente jovens negras/os. O país ainda tem se deparado com números alarmantes de pessoas que vítimas da violência, sendo os/as jovens outra vez os maiores alvos de mortes por arma de fogo, além da letalidade perpetrada pelo aparato do braço armado do estado, a polícia militar. Isso mostra o quanto o racismo ainda deita em nossa sociedade.

Por isso, procurando demonstrar a atualidade teórica de Clóvis Moura, fruto de um esforço hercúleo, é assertiva a iniciativa da Editora Dandara em coroar o público brasileiro com esta obra. Quem quiser ter um quadro mais ou menos acurado sobre a existência dos quilombos no Brasil, sem sombra de dúvidas não pode se eximir de conhecê-la, principalmente a geração de pesquisadores, educadores, militantes dos movimentos sociais e aqueles que têm a pretensão de conhecer quais foram as diversas estratégias e lutas encampadas pelos trabalhadores africanos escravizados no Brasil e como se forjavam as suas articulações no contexto da ordem escravista. O livro comprova não somente o compromisso de Clóvis Moura em municiar a classe trabalhadora para conhecer a luta do oprimido no Brasil, mas também expõe como se deram as lutas de classes no contexto da ordem escravista.

Em Os Quilombos e a Rebelião Negra o trabalhador escravizado, ao contrário do que prega a história “oficial”, não é veiculado enquanto um “escravo” passivo, que aceitou ser subsumido ao trabalho compulsório e que nada fez para combatê-lo. Moura afirma que o africano no Brasil foi o elemento fundamental para desgastar a ordem escravista por meio de seus mecanismos de combate à escravidão e, ao mesmo tempo, o principal protagonista no processo que desembocou na abolição da escravatura, em 1888. Assim, de acordo com Moura, só tem sentido afirmar a abolição da escravatura no país não apenas em detrimento da atuação do movimento abolicionista, mas em razão das lutas travadas pelos africanos escravizados antes do referido movimento.

A partir da criação de quilombos em todo o Brasil, quais sejam nas regiões urbana e rural – Sergipe, Bahia, São Paulo e Amazonas, por exemplo – Clóvis Moura denota que essas realizações dos africanos não foram somente locais onde negras/os procuravam “fugir” da sua condição de cativos, mas também tinham como finalidade construir espaços cujas relações de igualdade e solidariedade pudessem expressar o que seria uma sociedade ausente da dominação de classes. Não por acaso, nos quilombos habitavam todos aqueles que eram pertencentes as classes subalternas – negros, brancos pobres e nativos.

E mais, a capacidade dos quilombolas em produzir riqueza no interior das comunidades, a qualidade no que diz respeito a organização militar, a sua relação com os pequenos comerciantes – em Palmares – nos fornecem elementos substanciais para que possamos identificar o porquê de as classes dominantes despenderem esforços com a finalidade de destroçar os quilombos.

Outro fator que nos autoriza celebrar a reedição do livro Os Quilombos e a Rebelião Negra e a sua atualidade é o nexo que Clóvis Moura captura entre o papel dos quilombos e outras formas de lutas e resistências encabeçadas pelos trabalhadores africanos escravizados. Nesse caso, Moura indica o assassinato individual do senhor de escravo, as fugas isoladas e os suicídios praticados pelos africanos enquanto meios de não se submeter ao trabalho forçado e o aborto cometido pela africana escravizada. Os saques, as insurreições, as guerrilhas e as lutas emancipatórias no Brasil, a exemplo da Inconfidência Baiana, em 1798, também tiveram o protagonismo do negro. Tais acontecimentos comprovam que os escravizados, ao enfrentarem a ordem escravista, ainda fizeram com que as classes dominantes temessem aquilo que se convencionou chamar de “haitianização” do Brasil, despertando o “medo” branco.

Os aspectos arrolados acima estão presentes no trabalho de Clóvis Moura e abrem sendas para que possamos extrair os elementos que nos permitem agarrar o caráter das classes burguesas brasileiras. Dito de outra maneira, quem quiser entender a natureza reacionária e conservadora do Brasil, o caráter violento das classes dominantes do Brasil, a sua feição antidemocrática, a animosidade e aversão a tudo aquilo que concerne às demandas da classe trabalhadora em geral, como se efetiva a relação entre racismo, violência e exploração de classes, as bases para tal empreitada encontra-se em Os Quilombos e a Rebelião Negra.