Por Ana Paula Procópio

Assistente social e psicóloga, doutora em Serviço Social, professora da Faculdade de Serviço Social da UERJ. Coordenadora do Programa de Estudos e Debates dos Povos Africanos e Afro-americanos – UERJ.

 

A leitura desta obra, reeditada pela Dandara mais de 40 anos depois de seu lançamento, comprova que as ideias de Clóvis Moura continuam uma novidade, especialmente quando comparadas às historiografias e sociologias hegemônicas no campo do pensamento social brasileiro. Uma parte da atualidade de suas reflexões está na centralidade que o significado do protesto negro ganha em sua problematização da formação social brasileira. A tese do conflito que funda e dinamiza o desenvolvimento da sociedade nacional se contrapõe às explicações que caracterizam os protestos como expressões anticulturativas oriundas da suposta incapacidade de integração dos povos africanos e seus descendentes à cultura ocidental.

A concepção de praxismo que configura as manifestações negras como protesto também as caracteriza como experiências concretas em que os sujeitos negros, ao se negarem como coisa possuída, têm a oportunidade de se perceberem donos de seus próprios corpos e de se tornarem cada vez mais conscientes do caráter humano de sua existência. As resistências são entendidas em seu conjunto como a “práxis que nega o estatuto que desumaniza” (Moura, 1977).

A sua epígrafe de abertura confirma nossa percepção. A reflexão sobre Ciência e Consciência é um trecho de Peles negras, máscaras brancas de Frantz Fanon, que por sua vez abre o capítulo “A mulher de cor e o branco”, em que o autor aborda analiticamente o poder de alienação do racismo, que imobiliza nos negros o seu real movimento para o mundo, indisponibiliza a manifestação das componentes energéticas e simultâneas de agressividade e de amor e inviabiliza a construção de uma superestrutura valorizante acerca de si e de seus semelhantes.

Consideramos tais condições indispensáveis para a identificação coletiva, a criação e a operacionalização de estratégias organizativas de enfrentamento e emancipatórias. Por outro lado, o excerto inicial nos leva a questionar a produção científica que não confronta a hierarquização entre sujeito e objeto, que não se pauta pela alteridade, e a pensar quais as reais possibilidades de essa ciência produzir consciência. Ou ainda, de superar a concepção maniqueísta do mundo, porque não se trata de criar “uma sociologia negra no Brasil, mas que os cientistas sociais tenham uma visão que enfoque os problemas étnicos do Brasil a partir do negro[…] (Moura, 1988, p. 10) [grifos da autora]. Nesse sentido, o racismo brasileiro precisa também ser submetido ao crivo da objetividade científica. “Toda experiência, sobretudo se ela se revela infecunda, deve entrar na composição do real e, desse modo, ocupar um espaço na reestruturação desse real” (Fanon, 2020, p. 63).

O livro se situa na totalidade do pensamento mouriano como a abertura de um ciclo de problematizações acerca do lugar preponderante do antirracismo na luta anticapitalista, especialmente pela articulação dos nexos históricos, ideológicos, políticos e econômicos que alicerçam a intrínseca relação entre a marginalização do negro no pós-abolição e a funcionalidade dessa condição ao capitalismo dependente instituído no país. Esse é um debate que absolutamente não é realizado em bases meramente formalistas e academicistas, mas que está forjado na intencionalidade de “injetar consciência crítica e revolucionária na comunidade negra e nas camadas e segmentos realmente democráticos do País”. Afinal de contas, não somos uma temática. Somos 56% da população brasileira!

Em sua chave analítica, Moura nos apresenta como uma questão premente para a revolução brasileira o negro urbano emergente e sua condição social, levantando novos aspectos na relação entre escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo para compreensão do capitalismo dependente vigente no país. Trata-se de uma perspectiva de investigação histórica e sociológica que desmente a ideia do negro como peça subsidiária em nossa formação social e contesta a visão reificada e justificadora de sua marginalização no conjunto da sociedade contemporânea.

No pós-abolição os mecanismos discriminadores – capitaneados pelo racismo – empurraram os negros para a periferia do sistema capitalista. A marginalização racial e social é o elemento estruturante das subjetividades negras e determinante para as suas formas de organização política. Por outro lado, as ideologias de classe e o mito da democracia racial fundamentam também as relações entre os negros de condições econômicas diferentes e a posição no espaço social interfere no enfrentamento ao racismo de forma unificada. Pretos e pardos, que no conjunto racial brasileiro são negros, enquanto integrantes da classe trabalhadora internalizam articuladamente os desejos da branquitude e os valores burgueses, alienando-se de sua condição racial e de classe. Assimilam a hierarquização racial, embranquecem seu corpos e comportamentos. Recusam, conscientemente ou não, o conteúdo histórico e sociológico que lhes confere a potência radical de práxis negra.

Moura nos lembra que a população brasileira, de maneira geral, é etnocêntrica do ponto de vista branco. Em sequência dizemos que os brancos o são pela necessidade de se resguardarem contra a ameaça de perda do seu lugar em uma sociedade de capitalismo dependente, que por isso mesmo demanda a superexploração de grandes parcelas marginalizadas. E os negros? Pela incorporação de uma ideologia diuturnamente reiterada como verdade histórica que os estigmatiza como incapazes, descendentes de escravos-coisas, portanto, descartáveis no processo de “seleção natural” do sistema. Descartados, mas mantidos no permanente espetáculo da miséria, violência e morte banalizadas pelas mídias e que estabelece a fina linha do suposto equilíbrio entre a “gente de bem” e os “bandidos”.

As relações raciais politizadas como questão racial estão entrelaçadas à contradição entre as classes. No aprofundamento dessa percepção, afirmamos que o racismo antinegro é uma questão nacional. Não é uma especificidade que atinge um segmento social desarticulado do todo social. Ao contrário, as camadas negras organizadas compõem o elemento dinâmico para as conquistas em termos de transformações políticas, econômicas, sociais e culturais de cunho democrático e popular que reivindicamos para toda a sociedade. Porque a raiz do protesto negro não está somente no racismo contra o segmento específico. Ela é uma luta pela efetivação da humanização, da participação social democrática na nação e da desmarginalização de todos os segmentos sociais, ou mais precisamente, pela revolução radicalmente democrática das relações sociais no país.

 

Referências bibliográficas

FANON, F. Pele negra, máscaras brancas. São Paulo: Ubu, 2020.

MOURA, C. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1988.

______. Brasil: as raízes do protesto negro. São Paulo: Global, 1983.

______. O Negro: de bom escravo a mau cidadão? São Paulo: Dandara, 2021.