Por Dennis de Oliveira*

 

Causou grande “frisson” a entrevista concedida pelo professor Muniz Sodré à Folha de S. Paulo neste último domingo (19/03) em que ele fala sobre o seu novo livro – “O Fascismo da Cor” (Editora Vozes). Mas a grande polêmica foi que o professor critica o conceito de racismo estrutural, particularmente o que foi apresentado pelo atual ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida. Para Sodré, se o racismo fosse “estrutural”, ele já tinha sido derrotado por conta da antiguidade do movimento negro. 

Neste breve texto, quero primeiro alertar uma coisa: eu ainda não li o livro de Sodré (já está encomendado) e os comentários que irei tecer aqui estão centrados nas informações que ele apresentou na entrevista. Segundo, considero que um debate teórico neste nível não pode ser feito na perspectiva clubística, de torcida a favor de um ou de outro por conta de interesses ou contrariedades com um ou outro intelectual. Terceiro, que ambos – Muniz Sodré e Silvio Almeida – são intelectuais de altíssimo gabarito e sofisticação e dão grandes contribuições para a luta contra o racismo. E, quarto, ao dizer que “não é contra o uso do termo racismo estrutural” pelos movimentos sociais pois potencializa as lutas, Sodré não se confunde com um campo formado por pessoas que desqualificam a luta política das organizações negras.

Feito isso, a primeira coisa que quero pontuar é que defendo que o racismo no Brasil é estrutural, não só como palavra de ordem, mas como visão conceitual.

O argumento que Sodré aponta, primeiramente, é relativo ao conceito de estrutura. Segundo ele, estrutura é um conceito sociológico e filosófico que “pressupõe uma totalidade fechada de elementos interdependentes”. Ele afirma que “se o racismo é uma estrutura, temos que mostrar qual é a interdependência dos elementos”. E ele exemplifica que o racismo, por não ser explícito – “nenhum Estado ou governante se diz racista” – não haveria essa estrutura porque ela precisa estar formalizada, ter uma forma escrita ou uma forma de costumes reconhecida por todos.

Esse é o ponto central da divergência entre Sodré e o conceito de racismo estrutural. O conceito de estrutura aqui definido por Sodré é aquele expresso formalmente. Por isso, racismo estrutural para o autor se limita aos sistemas de apartação institucionalizada, como a segregação oficial nos Estados Unidos e o apartheid na África do Sul. Mas tanto Silvio Almeida como eu mesmo, na minha obra “Racismo Estrutural – uma perspectiva histórico crítica” (Dandara, 2021) partimos de um outra concepção de estrutura: a da tradição marxiana. 

No pensamento marxiano, a ideia de estrutura aparece de diversas formas, mas em especial na abstração da sociedade capitalista caracterizada pela “infraestrutura” (base econômica) e “superestrutura” (domínio jurídico-politico). A ideia de estrutura aqui aparece não como uma formalidade institucionalizada, mas como uma perspectiva gnosiológica, uma abstração para compreender as dinâmicas da sociedade capitalista para além das suas expressões formais. 

O conceito de racismo estrutural de Silvio Almeida se funda na ideia de processo do pensador marxiano Louis Althusser. Processo é ação sem sujeito. Para se chegar a essa ideia, Althusser desenvolve a teoria marxiana em níveis que vão de uma alta abstração (as categorias macromodais) caminhando para uma dinâmica histórica de longo prazo (categorias modais) até chegar às particularidades das contingências históricas (as formações sociais). Por exemplo, nas categorias macromodais, Althusser fala do conceito de modo de produção (todas as sociedades humanas têm modos de produção que se sucedem historicamente, formas que as sociedades humanas constroem para produzir coletivamente os bens materiais). Porém, os modos de produção não se restringem ao domínio do econômico, pois necessitam de um determinado tipo de sociabilidade garantido por arranjos institucionais específicos (os tipos de Estado) e determinados tipos de sujeitos adequados a essa ordem (ideologia como assujeitamento e práticas sociais).

Ora, tais categorias macro se expressam diversamente em momento singulares da história (modo de produção escravista, modo de produção capitalista etc) e, consequentemente, tipologias distintas de sujeitos e arranjos institucionais são constituídos. Sodré tem razão quando fala que havia um tipo de racismo (que ele considera como estrutural) no período do escravismo no Brasil – uma estrutura racista que organiza os sujeitos de tal forma que possibilita o funcionamento do modo de produção escravista independente dos comportamentos racistas. O problema que ele aponta é que com a Abolição essa estrutura deixa de existir e o racismo se transfigura para relações intersubjetivas e institucionais permeadas pelas ideias da eugenia e do darwinismo social. 

A grande pergunta é: por que tais ideias passaram a entrar no Brasil? Não se trata de mera reserva argumentativa que sustentaria uma retórica racialista, mas de uma dimensão funcional necessária para uma reinvenção do racismo estrutural no capitalismo brasileiro – um racismo estrutural que dá lógica à formação social do capitalismo dependente. Essa é a principal ideia que defendo na minha obra “Racismo Estrutural: uma perspectiva histórico-crítica”.

Isso porque quando se fala em capitalismo dependente, seguindo a conceituação de Ruy Mauro Marini, está se falando em superexploração da mão de obra (ou seja, o pagamento da força de trabalho em valores inferiores ao mínimo para a sua subsistência).

É essa particularidade do capitalismo brasileiro – inserido no nível mais concreto e contingente na estrutura analítica de Althusser – que constitui formas institucionais de Estado e tipos particulares de assujeitamento – e construções de sujeitos que levam as tais “relações intersubjetivas” de que fala Sodré.

Exemplificando: o racismo estrutural se manifesta quando se vê crianças brancas saindo de uma escola paga de alto padrão e poucos metros à frente se vê crianças negras vendendo doces para ajudar no sustento das suas famílias. Institucionalmente, todas são crianças e têm o “direito” de usufruir os direitos da infância. Mas o que vai ocorrer é essa “seletividade” no usufruto dos direitos que, ao contrário do que afirmou o ministro Luís Barroso (citado por Sodré), não é um não funcionamento da estrutura, mas a sua lógica funcionando plenamente. 

O racismo é estrutural porque justamente as estruturas lógicas dessa formação social do capitalismo dependente foram constituídas a partir do escravismo. Se o racismo estruturava aquela ordem escravista, ele estrutura o capitalismo da superexploração – as crianças negras vendendo doces geram até um comportamento condescendente (“elas estão trabalhando, e não roubando”). As manifestações preconceituosas de um vereador no Rio Grande do Sul logo após a denúncia do trabalho escravo nas vinícolas não foi à toa. O fato de as periferias viverem situações muito semelhantes a regimes autoritários – como invasões de domicílios sem mandados de busca, prisões ilegais, execuções extrajudiciais, entre outros – mesmo com mais de 35 anos de vigência da democracia institucional não é uma disfuncionalidade das estruturas, mas justamente a lógica estrutural que combina racismo com a sociabilidade da igualdade jurídica que é necessária para as relações capitalistas. O racismo, assim, é estrutural porque estabelece uma seletividade nessa sociabilidade da igualdade formal.

E reitero: tal seletividade é condição necessária para a particularidade do capitalismo brasileiro – de reproduzir a riqueza via superexploração. As ideias do darwinismo social e eugenia chegaram por aqui no final do século XIX e início do XX justamente para dar a sustentação a esse projeto. O branqueamento da população brasileira como política de Estado também nesse período vai nessa mesma linha. Negros e negras formam o estoque de exército de reserva de mão de obra e também de trabalho precário. As reações a políticas públicas de transferência de renda limitadas como o Bolsa Família (“ninguém mais quer trabalhar”), defesa da ideologia da securitização e da meritocracia (particularmente contra as ações afirmativas) são práticas que expressam uma determinada subjetividade (ou relações intersubjetivas, como fala Sodré,) mas que são produtos de uma estrutura de assujeitamento e constituição de uma sociabilidade aderente a uma forma de reprodução do capital

Podemos até avançar para um cenário mais global em que as hierarquias do sistema-mundo capitalista reservam aos países com maioria negra e indígena o papel de fornecimento de insumos e matérias-primas obtidos em condições de degradação da mão de obra e do meio ambiente (por exemplo, a extração de coltan, matéria-prima para as telas de touchscreen dos celulares e tablets, feita com mão de obra de crianças escravizadas no Congo).

Ou ainda, o debate sobre as políticas macroeconômicas que sinalizam para o montante que o Estado vai gastar para pagar os juros da dívida pública em detrimento de investimentos em áreas sociais. A manutenção da população mais pobre em condições degradantes é legitimada por uma naturalização da miserabilidade do povo negro. Isso não é apenas uma relação intersubjetiva e nem tampouco mero reflexo das ideias eugenistas. É a lógica do racismo que se inter-relaciona com a reprodução do capital.

Finalmente, considero extremamente rico o debate interposto pelo professor Muniz Sodré, principalmente porque nos força a refletir sobre o racismo como fenômeno social importante para se entender a realidade brasileira. Após ler o seu último livro, retorno com novos comentários sobre o tema. 

 

Sobre o autor*
Dennis de Oliveira é jornalista e professor da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de S. Paulo (USP) no curso de graduação em Jornalismo e nos Programas de Pós Graduação Sobre o autor em Integração da América Latina (Prolam) e Mudança Social e Participação Política (Promuspp). Coordenador científico do CELACC (Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação) e pesquisador do IEA (Instituto de Estudos Avançados) da USP. Coordenador do GT “Epistemologias decoloniais, territorialidades y cultura” do CLACSO (Consejo Latino Americano de Ciencias Sociales). Professor visitante da Universidad Minuto de Dios (Uniminuto) de Bogotá (Colômbia) e da Faculdad Latino-Americana de Ciencias Sociales (Flacso) de Buenos Aires (Argentina). Integrante da Catedra Scholas Ocurrentes da Universidade Central do Vaticano. Autor do livro “Jornalismo e emancipação – uma prática jornalística baseada em Paulo Freire” (Editora Appris, 2017) e organizador da coletânea “A luta contra o racismo no Brasil” (Ed. Publisher, 2017). Membro da Rede Antirracista Quilombação.

 

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