O artigo aborda o impacto do racismo institucional e suas origens como ideologia de dominação durante regimes políticos

 

Márcio Farias e Gerson Oliveira

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

 20 de Novembro de 2023

 

o último dia 16 de novembro de 2023, foi realizado na Assembléia Legislativa do Estado de São Paulo (ALESP) a audiência pública sobre o racismo institucional em São Bernardo do Campo, presidida pela deputada Paula da Bancada Feminista (PSOL). A audiência reflete um conjunto de denúncias que vêm sendo realizada em vários âmbitos nacional e internacional nos últimos anos e que evidenciaram práticas sucessivas e reiteradas de racismo institucional por parte do atual prefeito do município. Mas, afinal, qual a origem do racismo institucional no Brasil? Vejamos.

Capitalismo e racismo são indissociáveis. Ainda que se origine dentro do processo de expansão do capitalismo em sua fase mercantil de base colonial-escravista, enquanto ideologia, o racismo acompanhou o desenvolvimento do capital, suas múltiplas etapas, tornando-se assim, ao longo do século XX e XXI, uma ideologia de dominação e exploração que permite a extração de volumosa quantidade de trabalho excedente. 

No caso brasileiro, a sociedade e o Estado foram construídos às custas do escravismo, tendo na população  africana e seus descendentes o seu “grande povoador”, como indica Manoel Bomfim. No entanto, como lembra Clóvis Moura, o fim jurídico da escravidão foi resultado, após lutas intensas como a quilombagem e o movimento abolicionista, de uma série de arranjos institucionais para manter intocada a estrutura arcaica de propriedade e o conjunto de privilégios que ela proporcionava para a elite branca. Neste ponto, pesou o fato da população negra ter tido papel  político decisivo (em decorrência de um longo período de mobilização e luta) em todos esses movimentos políticos (fosse em defesa de interesses próprios ou de outrem) desde o início da colonização. 

Ainda que existente, persistente e perene, as lutas negras não lograram uma mudança de rumos da sociedade brasileira em termos populares e estruturais. Para as classes dominantes, neste contexto da antevéspera da república, negros e negras passaram a ser considerados/as inimigos/as internos a serem combatidos/as. No pós-abolição, frente aos arranjos acima mencionados, a população negra é forçada a se manter em posição subserviente e subjugada à exploração econômica da classe dominante, agora no contexto de um capitalismo periférico e dependente. 

Durante o longo período dos governos de Getúlio Vargas, especialmente na primeira fase (1930 à 1945), o racismo foi alçado dentro de uma nova complexidade, aqui não é o momento de aprofundar esse debate, mas importa caracterizar que as teorias eugenistas vigentes desde 1870 também foram reorganizadas sob o viés institucional e político do Estado para branquear a sociedade. No mesmo objetivo a mestiçagem passou a ser exaltada, ao contrário de exemplo da degeneração, agora foi convertida em algo positivo, como uma marca e expressão da brasilidade na esteira da concepção de Gilberto Freyre, de apresentar o Brasil para o mundo como o paraíso da “democracia racial”. 

Durante os anos da ditadura empresarial-militar (1964-1985) o movimento negro ao lado dos demais movimentos sociais como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), foi fortemente perseguido, com prisões, assassinatos e infiltrações, mas no seu caso, a acusação era justamente por desmascarar a imagem oficial de ‘país sem racismo’ que a ditadura difundia para projetar o patriotismo verde-amarelo, autoritário e abertamente fascista. Ademais, os militares monitoravam em detalhe as ações e manifestações organizadas pelo Movimento Negro Unificado (MNU) surgido a partir da tortura e assassintado do jovem negro Robson da Luz em 1978 e a repercussão que este movimento estava ganhando no seio do povo, no contexto da realidade brasileira com fortíssima presença negra em uma época de repressão, violências e negação de direitos.

Diante desses fatos históricos, ao analisarmos o caso brasileiro (com o devido distanciamento histórico), vemos que o racismo moderno no pós-abolição é um fenômeno que caracteriza as relações sociais nas suas mais variadas instâncias. Reflete-se, como manifestação cultural, nas relações interpessoais desdobrando tanto nas discriminações cotidianas vivenciadas pela população negra, como também guarda seus reflexos na subjetividade do brasileiro, uma vez que as marcas dessa sociedade racializada faculta diferenças materiais e simbólicas. Também, extrapola essa dimensão cotidiana e se irradia para outras esferas da vida social, como por exemplo, nas relações com o mundo do trabalho que, tanto em termos salariais como na qualidade do acesso à empregos formais, o racismo funciona como uma espécie de modulador das desigualdades de acesso à emprego e renda. 

O geógrafo Milton Santos certa vez, em uma de suas reflexões acerca dos processos de integração da população negra na moderna sociedade capitalista brasileira, avaliou que esta vivenciava uma cidadania mutilada, pois seus direitos e acessos eram – e ainda hoje são – negligenciados pelos mais variados agentes sociais públicos. É o que se vê quando se observa o acesso à saúde, moradia, previdência, à terra, ao bem-estar e direitos sociais mais amplos. Ao reconhecermos que as instituições – públicas e privadas – se organizam a partir de estruturas que estabelecem práticas adversas, negligentes, discriminatórias e excludentes, concluímos que estamos nos referindo ao racismo institucional.  

Por outro lado, o Estado, que negligencia o atendimento às demandas mais prementes dessa população, é o mesmo que trabalha na lógica policialesca e punitivista, tanto no campo, como na cidade, operando um verdadeiro massacre à população negra. A ordem violenta que impera na relação entre Estado e população se remete à tentativa histórica das classes dominantes em tentar conter a luta, tendo como plano político uma espécie de ação preventiva permanente para conter os possíveis focos de rebeldia, de tomada de consciência crítica por parte dessa população. 

Se o racismo tem na institucionalidade o seu agente fundamental de instrumentalização, significa que as instituições públicas e privadas no Brasil executam e reproduzem formas de violência contra a população negra e indigena. Elza Soares deu enorme projeção a uma grave denúncia do movimento negro quando cantou em sua voz que “a carne mais barata no mercado é a carne negra”. Se as pessoas negras estão reduzidas à sua carne e se valem menos, significa que são consideradas sub-humanos, menos dignos de direitos, de cidadania, de humanidade e é contra isso que a luta antirracista deve se insurgir.

O racismo se baseia em uma relação de poder com o outro, dialeticamente determinado (e determinante) na luta de classes. Isso independe de como ele se expressa, seja de forma “lúdico-recreativa”, como ato individual, inserido na dinâmica econômica ou como ato institucional; em todas estas formas quem o pratica exerce o seu poder contra outrem, uma camada social ou população. Ele conforma a estrutura, mas precisa de seus agentes que lhe dão vida e força material na reprodução das relações sociais de classe.

 

Assim sendo, quando retornamos à situação de  São Bernardo do Campo, podemos indicar que essa cidade é hoje uma das capitais nacionais do racismo institucional, denunciado na Organização das Nações Unidas (ONU), Organização dos Estados Americanos (OEA), no Ministério Público Estadual (MPSP), para o governo da Alemanha, entre outros órgãos, por racismo institucional. Sem dúvidas essa gestão do poder público municipal entra para a história por “mérito político” de seu representante maior, o prefeito Orlando Morando (PSDB). Talvez não exista paralelo em nosso curto período pós-ditadura e pós-Constituição de 1988 de um governo de uma grande cidade do país que tenha atuado em tantas áreas e de forma tão sistemática para atacar a população negra em âmbito municipal.

O coletivo de movimentos sociais, lideranças, organizações e representantes da sociedade civil que estão acompanhando e denunciando o caso de racismo institucional, reuniram as violações em mais de 60 pontos, conforme citamos alguns abaixo:

– despejo da casa do Hip Hop, importante centro cultural da juventude e instalação no local de base da GCM (Guarda Municipal);

– fechamento da Fundação criança, autarquia municipal existente desde os anos 1970;

– fechamento de três bibliotecas em locais que favoreciam o acesso da população negra;

– despejo de templo religioso de matriz africana e perseguição a povos de terreiro e seus religiosos/as;

– desprezo e indiferença à lei 10.639 que institui no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Por outro lado, a prefeitura mantém e incentiva o ensino da língua italiana nas escolas com o objetivo de ser a segunda língua mais falada pelos são bernardenses, pois têm “orgulho de ser italiano”, conforme informou em sua rede social;

– fim do tradicional carnaval de SBC e perseguição do Bloco Eureca;

– corte de linhas de ônibus que atendem a bairros periféricos e mais distantes do centro, exemplo de segregação urbana; 

– repressão e tentativa de proibir a realização da chamada “Batalha da Matríx”, importante encontro cultural da juventude do slam e do hip hop na cidade conhecido nacionalmente;

– despejo do projeto de Alcoólicos Anônimos (AA) do espaço onde funcionam por mais de três décadas;

– despejo da Gibiteca municipal. SBC era uma das poucas cidades do país a manter esse tipo de projeto com grande participação de estudantes de escolas públicas, jovens em conflito com a lei e da fundação criança;

– demolição e fechamento de teatros instalados na periferia voltada para o grande público pobre e negro;

– fechamento da escola livre de artes cênicas e dança;

– demolição e remoção de famílias pobres da periferia em plena pandemia, sob o argumento de classificação como “área de risco”;

– desincentivo e imposição de restrições à prática de capoeira e grupos musicais de percussão ou ligados a elementos da “cultura negra”;

– retirada da gratuidade e redução da oferta de ônibus para bairros periféricos mais afastados do centro da cidade e que facilitava o acesso à unidade Unidade de Pronto Atendimento (UPA);

– tentativa de despejar o Projeto Meninos e Meninas de Rua (PMMRR) de sua sede, que há quatro décadas atua na defesa dos direitos humanos e formação cultural de crianças, adolescentes, jovens e adultos, com reconhecimento nacional e internacional. A assinatura do decreto para o despejo do Projeto se deu no dia 13 de julho de 2020, justamente a data de comemoração de 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e em plena pandemia de Covid-19;

– desrespeito ao 20 de novembro, dia da consciência negra no município e tornado feriado estadual recentemente. Durante esta data em 2021 o prefeito realizou como único evento oficial do dia um evento de promoção da cultura alemã e no ano seguinte (2022), de homenagem à cultura nipônica (japonesa);

Na referida audiência pública, citada no início deste texto, realizada para debater as violações ocorridas em São Bernardo do Campo, um dos encaminhamentos foi que o prefeito da cidade apresenta o plano municipal de combate ao racismo contra a população negra, evidenciando ações concretas nesse sentido. O caso aqui apresentado refere-se à situação concreta de SBC, mas como viram, pode ser qualquer outro município brasileiro, pois o racismo não é um caso isolado ou especificidade de uma gestão; está entranhado nas relações dessa sociedade e de seu modo de produção dominante, por isso não é possível obter sucesso combatendo o racismo (isoladamente) sem enfrentar o capital, o patriarcado e todo conjunto de opressões.

Esse é mais um 20 de novembro de luta, momento oportunidade para darmos visibilidade a este e tantos outros casos de racismo. A luta é por reparação histórica, ainda que as milhões de vidas ceifadas não possam ser reparadas, mas esta é em honra a luta dos que vieram antes e pela necessidade dos que seguem combatendo no presente. A luta é também para seguirmos vivendo para lutar mais. 

Conceição Evaristo nos conta que eles “combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer”, esta é a astúcia e a ousadia de quem descende de povos ancestrais, que aprenderam a viver e guerrear há muito e por muito tempo antes dessa era.

*Gerson Oliveira é Coletivo Terra, Raça e Classe do MST e Márcio Farias (PUC-SP).