Por Dennis de Oliveira
No desfile das escola de samba de São Paulo do carnaval deste ano, a escola de samba Vai-Vai apresentou o enredo “Capitulo 4, Versículo 3 – Da rua e do povo, o Hip Hop – Um manifesto paulistano” baseado na obra Sobrevivendo no Inferno do Racionais MC’s. O enredo foi uma releitura dos movimentos artístico-culturais de São Paulo, iniciando com uma crítica a Semana de Arte Moderna de 1922, retratada como uma vanguarda artística ainda dentro dos parâmetros da elite aristocrática da cidade e, em contraponto, a emersão de um outro movimento que vem das periferias que enfrenta a desigualdade social (retratada em uma das alegorias ratos que sustentam a sofisticação), o racismo e a violência policial. Um cenário de opressão, existência e resistência.
Em determinada ala, policiais são retratados como seres diabólicos que circundam os artistas do hip-hop. O encarceramento em massa de jovens negros também foi retratado pela escola na avenida. E o desfile finaliza com a estátua de Borba Gato sendo pichada e “incendiada” sinalizando para a necessidade de ruptura radical com uma ordem opressiva.
Um desfile que incomodou vários setores.
O primeiro, e mais evidente, foi a Polícia. Sindicato dos delegados da Polícia soltaram nota de repúdio à escola de samba por “demonizar a polícia” e exigiu que agremiação fizesse uma “retratação pública” (ver matéria). Já os mais contundentes foram parlamentares da chamada “bancada da bala”. O deputado federal Capitão Augusto e o deputado estadual Dani Alonso. ambos do Partido Liberal de S. Paulo, oficiaram ao governador Tarcísio Freitas e ao prefeito da capital, Ricardo Nunes, que bloqueassem o repasse de recursos à escola por ter difamado a instituição da Polícia Militar com o desfile. Em sua defesa, a diretoria da Vai Vai disse que o desfile seguiu o enredo baseado no álbum do Racionais em que a crítica a violência policial é a tônica.
Logo após essas polêmicas, o jornal Folha de S. Paulo noticiou no dia 14 de fevereiro (quarta-feira de cinzas) que “suspeito de chefiar PCC emprestou R$300 mil para Vai Vai desfilar em 2022″. Esta ideia de vínculo da escola com o PCC já havia sido noticiada pelo mesmo jornal em dezembro do ano passado (“Investigação aponta Vai-Vai como reduto do PCC”) e repercutiu em outros portais, como o portal Metrópole. Mario Sabino, colunista do portal e conhecido pelos seus posicionamentos direitistas principalmente quando diretor de redação da revista Veja, afirma em sua coluna que “na geléia geral brasileira, está dado que a bandidagem comanda o espetáculo de brilhos, bundas e crítica social”. E como forma de retratação. Sabino defende que a Vai Vai deveria em 2025 apresentar como enredo como o PCC mata jovens pretos e periféricos.
O que é interessante é que esta denúncia de elo da escola com o PCC foi requentada justamente neste momento de polêmica, dando sustentação a uma narrativa de que “quem critica a polícia é bandido”. Uma forma de criminalizar vozes dissidentes da ordem social.
E serviu para mobilizar a extrema direita: o deputado bolsonarista Paulo Bylinskji quer que a Câmara dos Deputados convoque o ministro Silvio Almeida para explicar porque “desfilou” na Vai-Vai num enredo que criminaliza a polícia e ainda ao lado do líder dos motoboys, Paulo Galo, acusado de ter liderado a ação que incendiou a estátua de Borba Gato em 2021.
Mas por que o desfile da Vai Vai incomodou tanto?
Primeiro por retratar um dos principais elementos do movimento hip-hop paulistano: o de ser um grito da periferia contra a violência policial nos anos 1980 por meio de um dos mais emblemáticos álbuns do Racionais, o Sobrevivendo no Inferno. Ao dar voz a este movimento, aproveitando a visibilidade midiática dos desfiles de escolas de samba, o Vai Vai rompeu o cerco do silenciamento que possibilita que diariamente se assassine um jovem negro a cada 21 minutos nos territórios periféricos no Brasil. É o silenciamento que permite o genocídio da população negra periférica.
Contra isto, a criminalização. Não foi à toa que veículos midiáticos repercutiram esta pauta do elo da Vai Vai com o PCC justamente na esteira desta repercussão. Querendo ou não endossaram a lógica da extrema direita de quem critica a violência policial é bandido. Da mesma forma que o deputado que quer convocar o ministro Silvio Almeida requenta a tese furada de que o ministro financiou a “dama do tráfico”.
Porém, há uma outra dimensão mais oculta. O Vai Vai saiu do terreno do “equilíbrio de antagonismos”, uma concepção liberal freyreana (de Gilberto Freyre) de gerenciar a diversidade ainda hegemônica quando se trata de se pensar cultura no Brasil. O carnaval negro que durante muito tempo foi criminalizado, se impôs como ação cultural e a tolerância para que pretos e pobres assuma certo protagonismo nesta festa vai até o limite onde as contradições não são explicitadas.
O enredo da Mocidade Alegre, vencedora com todos os méritos do carnaval deste ano, é um exemplo do que é tolerado: uma diversidade retratada a partir do olhar de um intelectual que é icônico no modernismo paulista – Mário de Andrade – principalmente porque, nesta imagem icônica, é esvaziada a sua negritude e a sua condição sócio-econômica mais desfavorável comparada com os demais intelectuais do movimento de 1922. Daí que esta diversidade aparece como um caleidoscópio, uma carnavalização que possibilita que os antagonismos sociais (de classe e raça) sejam dirimidos na geléia geral da cultura, como defendia Gilberto Freyre. As máscaras das fantasias aqui possibilitam a metarracialidade, desejo utópico freyreano.
São zonas de enfrentamento no campo da cultura importantes para serem refletidas. Lembro que a Vai Vai está com um problema de estar sem quadra já que ela foi desapropriada para a construção da estação do metrô. Além disso, as escavações para as obras do metrô descobriram vestígios da existência de um quilombo na região e há um forte movimento de defesa do patrimônio da Saracura. Trata-se de conflitos de significações do território urbano, é o direito à cidade que se debate. A Vai Vai incomodou pelo enredo de 2024. Mas incomoda há muito tempo por reunir milhares de pretos e trabalhadores no centro da cidade.
Milton Santos já dizia que o capital é quem organiza o território. A necropolítica da violência policial serve para instituir uma reorganização dos espaços territoriais na lógica da colonização. Construir uma universalidade acima das contradições para dar conta desta diversidade seja pela criminalização do outro ou pelo apagamento dos antagonismos considerando-os que eles se equilibram na visibilidade das suas expressões tem suas diferenças de enfoque, mas ambas contribuem para apartar a maioria do povo, preto, pobre, trabalhador, da periferia, muito distante de qualquer democracia substantiva.