Uma onda crescente de violência, que atinge com mais frequência pessoas negras, prioritariamente homens adultos, agora também alcança crianças e adolescentes
Por Rachel Quintiliano*
Neste ano, o Brasil celebrou, pela primeira vez, o Dia Nacional de Zumbi dos Palmares e da Consciência Negra como um feriado nacional, sancionado pela Lei 14.759/23. A data já havia sido reconhecida como relevante para o país por meio da Lei 12.519/2011, durante o governo da presidenta Dilma Rousseff. O feriado chega cinco décadas após ser proposto pelo movimento social negro. A história indica que a data é celebrada pelas comunidades negras desde o início da década de 1970 e foi sugerida pelo Grupo Palmares, organização com sede em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul.
Inicialmente, a intenção deste artigo era abordar as conquistas do movimento social negro que possibilitaram ao país dispor de uma legislação inovadora para enfrentar as iniquidades raciais, como o Estatuto da Igualdade Racial, a Política de Atenção à Saúde Integral da População Negra e as cotas nas universidades públicas. Todavia, como a data também tem por objetivo refletir sobre a situação e o impacto do racismo na vida dos brasileiros e, diante da contínua e crescente violência letal contra crianças e adolescentes negros, este texto não traz boas notícias e, mais uma vez, se faz ferramenta de protesto e denúncia.
Duas notícias recentes lançaram luz sobre o tema: o julgamento de acusados por assassinatos contra crianças. Em julho, os policiais acusados de executar, com arma de fogo, João Pedro, de 14 anos, foram absolvidos. Há poucos dias, o policial acusado do assassinato da menina Ágatha, de 8 anos, também foi absolvido pelo júri. A menina Ágatha e o adolescente João Pedro não estavam em conflito com a polícia. João Pedro brincava com outras crianças dentro da casa de um tio, enquanto Ágatha estava em um veículo com a mãe. Infelizmente, as duas mortes não foram casos isolados, o que leva a crer que uma onda crescente de violência, que atinge com mais frequência pessoas negras, prioritariamente homens adultos, agora também alcança crianças e adolescentes.
Segundo dados da pesquisa Panorama da violência letal e sexual contra crianças e adolescentes no Brasil, publicada neste ano, com informações de 2021 a 2023, pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 5 mil crianças e adolescentes são assassinados por ano no país. Os números do estudo são superlativos e registraram 15.101 vítimas de mortes violentas intencionais (MVI) e 164.191 de estupro e estupro de vulnerável.
O Brasil não é um país seguro para crianças e adolescentes, o que demonstra que mais uma das políticas de vanguarda, o Estatuto da Criança e do Adolescente, não tem sido eficaz para proteger a infância e a adolescência no país. O Ceará concentra o maior número (552) de mortes violentas intencionais de crianças e adolescentes com idade entre 0 e 19 anos. O estado com o menor número é Roraima (26). O Distrito Federal contabiliza 39 mortes.
Unicef e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública “revelam um crescimento dos assassinatos de crianças, especialmente na faixa etária de 0 a 4 anos, cujo aumento foi de 20,4% entre 2021 e 2023, e de 5 a 9 anos, com crescimento de 49%”.
Ao observar os dados a partir do quesito raça/cor, a situação é ainda mais preocupante e corrobora que Ágatha e João Pedro não são casos isolados. Para todas as faixas etárias do estudo, negros (pretos e pardos) são maioria. Entre 0 e 4 anos, representam 64,3% do total de crianças vítimas de mortes violentas intencionais. De 5 a 9 anos, 71,1%; de 10 a 14 anos, 79,5%; e de 15 a 19 anos, 83,6%.
Infelizmente, a falta de abordagem sobre o assunto e a baixa comoção são resultados da sofisticação do racismo que desumaniza as pessoas negras, inclusive as crianças.
Por essa razão e em alusão ao Dia da Consciência Negra e de Zumbi dos Palmares, este texto não poderia perder a oportunidade de denunciar a situação e chamar a atenção da opinião pública para o tema, que pode, com o aumento da violência contra crianças, em particular as negras, excluir de vez o Brasil da categoria de país do futuro.
Rachel Quintiliano é Jornalista, escritora e membro -fundadora da Cojira-DF, autora do livro Negra Percepção: sobre mim e nós na pandemia