Por Marcio Farias¹
Clóvis Moura (1925-2003) e Abdias do Nascimento (1914-2011) são dois nomes que figuram entre os mais importantes intelectuais que se propuseram a interpretar o Brasil. Ambos abordaram os dilemas da sociedade brasileira durante o século XX, com ênfase na situação da população negra, abordando os aspectos históricos e sociais do período da escravidão correlacionando com a sociedade contemporânea, de modo a questionar a produção intelectual brasileira sobre o tema e propor plataformas políticas de médio e longo prazo para eliminar o racismo enquanto ideologia que nunca permitiu plena inserção do negro na modernidade capitalista brasileira. Em seus escritos e estudos, tanto Moura como Abdias, partem de uma interpretação oposta à de Gilberto Freyre e outros escritores que entendiam a escravidão como sendo um sistema basicamente convergente, composto por escravizados, em geral, ajustados à sua condição servil de um lado, e senhores despóticos, ainda que protetores, de outro. Moura e Abdias buscaram valorizar a resistência dos escravizados africanos e a sua importante ação na transformação ou destruição da sociedade escravista, com o objetivo de demonstrar o importante e ativo papel do negro na formação da nação, não só do ponto de vista cultural, muito abordado pelo pensamento social brasileiro, mas principalmente social, desdobrando-se nos planos políticos e econômicos.
Abdias do Nascimento e o Quilombismo
Abdias do Nascimento nasceu no interior de São Paulo e na década de 1930, já na capital paulista, iniciou seu ativismo na luta antirracista. No início da década de 1940, viajou pela América do Sul como integrante da Santa Hermandad Orquídea, um grupo formado por poetas latino americanos. Em certa ocasião, Abdias foi assistir no Teatro Municipal de Lima, capital do Peru uma peça do dramaturgo estadunidense Eugene O´Neill chamada “Imperador Jones”, cujo personagem principal é negro e, nessa ocasião, foi interpretado por um ator branco pintado de preto. Diante desse fato, Abdias relata que fez a seguinte reflexão:
Por que um branco brochado de negro? Pela inexistência de um intérprete dessa raça? Entretanto, lembrava que, em meu país, onde mais de vinte milhões de negros somavam a quase metade de sua população de sessenta milhões de habitantes, na época, jamais assistira a um espetáculo cujo papel principal tivesse sido representado por um artista da minha cor. Não seria, então, o Brasil, uma verdadeira democracia racial? Minhas indagações avançaram mais longe: na minha pátria, tão orgulhosa de haver resolvido exemplarmente a convivência entre pretos e brancos, deveria ser normal a presença do negro em cena, não só em papéis secundários e grotescos, conforme acontecia, mas encarnando qualquer personagem – Hamlet ou Antígona – desde que possuísse o talento requerido. Ocorria de fato o inverso: até mesmo um Imperador Jones, se levado aos palcos brasileiros, teria necessariamente o desempenho de um ator branco caiado de preto, a exemplo do que sucedia desde sempre com as encenações de Otelo. (Abdias, 2004, p.209).
A partir das reflexões provocadas por esse fato, quando do seu retorno ao Brasil organiza o Teatro Experimental do Negro, cujo objetivo era possibilitar aos negros acesso ao teatro não só como possibilidade de inserção cultural e representação positiva, mas também como espaço de conscientização politica.
Nas décadas seguintes Abdias ampliará seu escopo de atuação nas causas da população negra no Brasil e no exterior, chegando ao Senado Federal em meados dos anos de 1990. Nesse ínterim, ainda nos idos da década de 1970, quando da sua aproximação do movimento panafricanista, Abdias apresenta sua formulação politica cunhada de Quilombismo:
Como sistema econômico, o quilombismo tem sido a adequação ao meio brasileiro do comunitarismo e/ou ujamaaísmo da tradição africana. Em tal sistema as relações de produção diferem basicamente daquelas prevalecentes na economia espoliativa do trabalho, chamada capitalismo (…) Compasso e e ritmo do quilombismo se conjugam aos mecanismos operativos do sistema, articulando os diversos níveis da vida coletiva cuja a dialética interação propõe e assegura a realização completa do ser humano (Nascimento, 1980, p. 264).
Passemos à Quilombagem de Moura para que possamos, por fim, tentar traçar elementos apontamentos de convergências e divergências entre essas duas propostas.
Clóvis Moura e a Quilombagem
Moura nasceu no Piauí, foi estudante universitário na década de 1940 na Bahia. Por lá, atuou em alguns jornais que eram ligados ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), ingressando nas fileiras desta instituição nesta época, onde teve contato com a teoria social marxista, subsidio teórico que lhe foi o alicerce de seus estudos desse momento em diante, não havendo um momento de ruptura ao alinhamento com outras propostas teóricas por toda sua produção teórica.
Após sua saída do PCB, Clóvis Moura nunca mais integrará as fileiras de nenhum partido, mantendo apenas um bom diálogo com a fração que participa do “racha” do partidão e que em 1962 funda o PC do B. Da década de 1960 até a década de 1980, Moura se dedica aos estudos, participação em congressos, elaboração de artigos para revista cientificas, jornais e revistas, além da publicação de algumas obras de importância singular para os estudos sobre relações raciais no Brasil.
Em linhas gerais, a interpretação da realidade brasileira em Moura pode ser sintetizada da seguinte maneira: O africano escravizado e seus descendentes protagonizaram a luta de classes no Brasil. No período que vai do século XVI até 1850, em que vigorou o escravismo pleno, a ação constante do escravizado negando o sistema colonial foi um dos elementos que forjou a transição do regime politico colonial para a independência. Nesse sentido, essa ação constante do escravizado desse período Moura chamou de Quilombagem. De 1850 e 1888 se estabelece aquilo que Moura convencionou como escravismo tardio, período que a elite branca brasileira aperfeiçoa seus mecanismos de dominação e exploração da força de trabalho e promove o branqueamento enquanto ideologia de modernização brasileira rumo a sociedade de trabalho livre assalariado. A questão que se coloca para Moura é que mesmo submetido ao processo de marginalização do processo de trabalho formal, a população negra se reorganiza e luta contra essa dinâmica de exclusão tendo a cultura como mediação fundante dessa resistência. Processo que se estende aos dias de hoje.
Apontamentos para possíveis interpretações de convergências e divergências entre Abdias e Moura
Ainda que ambos tenham seguido caminhos muito similares em suas formulações teóricas, Abdias Do Nascimento e Clóvis Moura têm diferenças e divergências que se expressam de maneira mais evidente no campo politico. Essas diferenças e divergências não os colocam em planos opostos, mas em perspectivas diferentes do mesmo campo de atuação: a luta antirracista. Essas diferenças estão sintetizadas nas propostas políticas. Quilombagem, por parte de Moura e Quilombismo, por Abdias do Nascimento.
Abdias antecede Moura, ainda que no auge de suas militâncias, tenham sido contemporâneos. Em seus trabalhos da década de 1970 e início da década de 1980, Abdias cita Moura como referência bibliográfica básica para compreensão do legado político da população negra no Brasil. No campo político, como já dissemos, Abdias se inseriu no contexto da luta antirracista internacional se conectando com alguns setores das várias correntes panafricanistas, que criticavam, entre outras pautas, a vulgata marxista que durante todo o século XX negou o papel político do racismo enquanto elemento importante da luta de classes. No plano da luta antirracista no Brasil, no último período de sua militância se aproxima dos setores ligados às causas trabalhistas, dialogando, entre outras personalidades, com Leonel Brizola e com Darcy Ribeiro. No plano teórico, absorve as teses de Florestan Fernandes que foi um intelectual importante na luta contra o mito da democracia racial.
Moura, por sua vez, ainda que não inserido como quadro em nenhum partido de esquerda, nunca abriu mão do marxismo como horizonte analítico. Durante a década de 1980, período em que compreendeu, equivocadamente, como uma abertura histórica para uma revolução social no Brasil, apresentou pela primeira vez as suas divergências em relação às análises empreendidas por Florestan Fernandes e seu grupo sobre a história do negro brasileiro, como também apresentou suas discordâncias sobre a inserção política do grupo ligado ao Abdias, pois segundo ele, alguns setores do movimento panafricanista internacional têm contradições internas mais intricadas, favorecendo setores muitas vezes mais abastados da população negra, distante das contradições vividas pela massa dos trabalhadores negros. Para Moura, a proposta de Abdias do Nascimento no Brasil também incorporou essas contradições dessas vertentes internacionais. Segundo Clóvis Moura, apesar das coincidências existentes na luta antirracista no Brasil e no mundo antes da década de 1940, é somente em 1944 com o surgimento do Teatro experimental do Negro que essas lutas ganham contornos verossimilhantes:
(…) surge, em 1944, o Teatro Experimental do Negro, liderado por Abdias do Nascimento. Era, de fato, um conjunto que apresentava a negritude de forma consciente, desejando, através da ideologia, organizar os negros no Brasil. O movimento editou ainda o jornal Quilombo no qual o pensamento e a proposta do TEN se expressavam. Mas, o que esse grupo apresentava à grande comunidade negra marginalizada nas favelas, nas fazendas de cacau e de algodão, nas usinas de açúcar, nos alagados e nos pardieiros das grandes cidades? Nada. (MOURA, p. 103, 1983).
Para Moura, dada as contradições capital e trabalho, tendo como mediador o racismo, o elemento negro pauperizado criou e criará elementos simbólicos para ressignificar sua existência na sociedade de classes, portanto, caberia aos setores organizados da população negra se aproximar dessas manifestações culturais e artísticas fornecendo subsídios para o salto qualitativo do ponto de vista da consciência política à uma consciência revolucionária, ao invés de utilizar recursos “pequeno burgueses” para inserir o negro na sociedade de classes.
Devido as limitações de espaço, tracei apenas pequenos esboços de semelhanças e diferenças, que não esgotam a discussão sobre a obra desses dois importantes intelectuais.
Referências Bibliográficas
Moura, C. Brasil: as raízes do protesto negro. São Paulo: Global, 1983.
________. História do negro brasileiro. São Paulo: Ática, 1989.
Nascimento, A. O Quilombismo. Petrópolis: Vozes, 1980.
________. “Teatro experimental do negro: trajetória e reflexões”. Estudos Avançados, São Paulo , v. 18, n. 50, p. 209-224, Apr. 2004 .
¹ Mestre em Psicologia Social, PUC-SP, membro do Nutas (Núcleo de Estudos de Trabalho e Ação Social) PUC-SP, professor convidado do Celacc -ECA/USP e integrante do NEPAFRO.
Publicado originalmente em: https://www.nepafro.org/post/quilombismo-e-quilombagem-diverg%C3%AAncias-e-converg%C3%AAncias-entre-abdias-do-nascimento-e-cl%C3%B3vis-moura